segunda-feira, 30 de março de 2009

ROBERTA SANCHES

DESFILE À MARGEM

Sol de 34 graus, recebo uma ligação no meu celular. Meu namorado me fazendo um convite para irmos à praia. Aceitei na hora, óbvio, um calor desses, o melhor que poderia fazer é encarar o sol, revê-lo - tomar uma cerveja gelada e comer um caranguejo.

Escolho meu melhor biquíni e lá me vou. Marcamos ás 10h30min no meu prédio e lá decidimos que iríamos para Jaguaribe, pois é uma praia mais perto e nós nesse dia estávamos sem carro. Além do mar estar calmo nesse dia muitas pessoas tiveram a mesma ideia de pegar um bronze. E a partir daí acontecem alguns encontros. A primeira etapa é o ônibus. Dia de sábado, com esse calor, o mínimo que posso esperar são “criaturas”, uma se “esfregando” na outra em busca do melhor lugar no “buzu”. Tudo bem, alguns empurrões de lá, outros de cá, cheguei, ufa!!Pensei!Que infeliz idéia de vir de ônibus á praia em pleno fim de semana. Mais vamos em frente! Coragem!. De cima percebo o movimento, penso quanta gente, não disse?! Errei o dia?! Mas agora não há mais tempo para desistir, a praia me espera. Encontro uma mesa na barraca Areal, depois de solicitar o cardápio e pedir uma Skol bem gelada, vejo aonde irei sentar para pegar um bronze. Corpos espalhados na areia pareciam mais um rodízio de carnes. Umas mal passadas outras bem passadas e ainda por cima tinha uma criatura que estava esticada na areia cheia de óleo e areia parecia um rosbife empanado tinha carne para todos os gostos. Como se fosse possível avistei um pequeno metro quadrado para “esticar” o meu corpo, olho e logo me sento, senão, corro o risco de perder o lugar ao sol. Reparos nos que estão presente naquele mesmo local. Não é possível, pergunto a meu namorado se hoje é domingo, ele ironicamente diz que não e ri. Relembro os maravilhosos dias que já tive na costa. Procurávamos vir aos sábados porque era sempre mais tranqüilo e não havia “briga” por um metro quadrado na areia. Com o passar dos anos, a situação começou a mudar, não sei se foi o desemprego, o que posso afirmar, é que hoje, as praias vivem lotadas.

Mulheres e homens desfilam para lá e para cá, até parece um desfile de moda. Cada um, querendo exibir o físico, os corpos esculturais. Assim começa a guerra da beleza no litoral da cidade. Mulheres magérrimas, homens super sarados. Só de perceber e pensar no assunto, até tenho vergonha de tirar a roupa.

Biquínis de lacinhos, top less, fio dental, asa delta, entre tantos outros modelitos, detalhe, menores com o passar dos anos. Olho para todos os cantos e lugares, juro que não consigo parar de pensar de como é difícil regrar a alimentação. É dificílimo encontrar um ser humano que fuja do padrão de beleza exigido pela nossa sociedade esquelética (com raras exceções). Começo a me sentir uma estranha no ninho, será que eu sou louca por querer viver feliz sem restrições a alimentação? Tenho quase certeza que sim, no mínimo, um ser de outro mundo, ou é exagero? Saudade mesmo é da época que eu era pequena que usava um maiô rosa e amarelo, as mulheres não eram magras dessa maneira. Pelo contrário, o padrão de beleza exigido era corpos exuberantes, roliços, com volume, ou no mais popular (um pouco grotesco) havia carne para pegar. Com todo esse exibicionismo, as gordinhas são raras nas praias. Tem umas até ousadas, que colocam seus biquínis e tratam de aproveitar. Certas são elas que não se preocupam com o que os outros falam.

Meu Deus, até os farofeiros estão sumindo. Eu mesma quando ia à praia há anos com a família, era certo levarmos nossa vasilha com uma boa farofa de manteiga e o franguinho assado e desfiado. Mais atenção! Só quando a praia era distante, quase deserta, tipo Scarife. Hoje, os alimentos mais procurados na maioria das vezes pelos sarados (as) e esqueléticos são: sanduíches naturais, sucos energéticos, açaí, e seus derivados. Infelizmente já não trago mais a minha farofa, vontade não falta, mas coragem... hum, essa é que não me deixa trazer. Após mais um gole da loira mais exuberante da beira-mar, me dou conta de que também faço parte dessa sociedade com regras impostas.

domingo, 29 de março de 2009

HENRIETTE M. TOURNILLON

(SEM TÍTULO)

Naquele fim de tarde cheguei a pensar que iria cumprir, mais uma vez, uma conhecida rotina. No princípio, até que não me enganei, pois era no mesmo velho ônibus que eu me encontrava disputando, com um amontoado de pessoas, um lugar para sentar.

Vencida a batalha, e de posse do meu lugar, inesperadamente, vi cair sobre o meu colo um enorme buquê de flores do campo. Foi nesse momento que, sem esperar, iniciei um trajeto novo e inesquecível:

- Por favor, segure para mim.

Saiu ligeiro até o cobrador, pagou a passagem e, correndo, voltou para as suas flores.

-Muito obrigado – me disse o senhor – agora eu seguro.

Eu lhe disse que poderia segurar e, ao querer colocá-las – indevidamente – no chão, o homem não concordou e em um grito desesperado, bradou:

- A senhora vai machucar as flores!

Quis tomá-las da minha mão. Não deixei.

Nesse deixa-não-deixa, o ônibus deu aquele famoso freio de arrumação – como se nos mandasse ficar quietos – e o senhor das flores foi jogado, primeiro pra trás, depois, pra frente sem piedade. Eu, que com uma das mãos segurava as benditas flores, com a outra catei o velhinho e fiz o que era certo e de direito: levantei-me e cedi o lugar para ele.

Agradecido, acomodou-se, colocou as flores – que deviam estar cansadas de tantos solavancos – delicadamente, no colo e, voltando-se para mim com olhos brilhantes, quase chorosos, desabafou:

- São para minha filha! Ela faz aniversário hoje. É uma moça maravilhosa e me faz rir até quando brigamos.

Naquele instante, confesso, senti inveja daquela filha, daquele pai, daquelas flores. Eu não podia ficar imune a tanta ternura, a tanto carinho. Era o perfume do amor que exalava a cada vez que aquele pai fazia elogios à sua filha e ajeitava, cuidadosamente, as flores. A impressão que me dava era que em seu colo estava não um buquê de flores do campo, mas ela, ela mesma, a sua filha.

Segui a viagem em pé, porém, ao seu lado, escutando, atenta, as histórias que ele contava a respeito da filha. Seu primeiro aniversário, sua festinha de quinze anos, seu primeiro namorado, o dia em que se casou...

Memórias de pais amorosos podem até ser parecidas, mas, com certeza, têm perfumes inigualáveis.


(SEM TÍTULO II)

Quando eu nasci, o meu país não era livre mas, mesmo assim, a cada sete de setembro comemorava-se a Independência do Brasil. Ainda me lembro, apesar de bem pequena, da minha jovem mãe, linda como sempre e, mais ainda, naquele vestido de flores, a me acordar com seu largo sorriso. Eufórica, queria todos de pé para que fossemos assistir ao que ela chamava de parada.

Nesse tempo, criança não tinha vontade própria e, assim como no nosso país o regime não nos dava escolhas, tínhamos que obedecer às ordens superiores. Meus irmãos, eles sim, pulavam da cama ansiosos para ver os tanques de guerra, as acrobacias dos motociclistas e os pracinhas que, com meu pai sempre dizia: haviam lutado na 2ª guerra mundial. Guardo ainda na lembrança, do meu olhar de criança, um sentimento de pena daqueles velhinhos que, a passos lentos, não sei se pelo peso da idade ou das enormes medalhas, arrastavam-se pela avenida.

Se meus irmãos e meus pais se divertiam eu, pelo contrário, torcia pra que aqueles homens de fardas e imensas botinas apressassem o passo e me deixassem brincar de roda gigante no parquinho que, todo ano, era montado na Praça do Campo Grande.


FERNANDA BORGES

A GENTE SÓ DÁ VALOR QUANDO PERDE... SAUDADES DA ÉPOCA DA ESCOLA

Por que será que nessa vida a gente só sabe valorizar as coisas quando as perdemos?

Me peguei pensando na época de escola, quando a gente não tem responsabilidade nenhuma, somente a grande missão de estudar e passar de ano - que pra gente, naquele momento, é uma tarefa muito árdua.

Pense que nem imaginamos o que nos espera pela frente. A tendência é piorar mesmo. Não é uma visão pessimista, mas realista. O pior de tudo é que acabamos na maioria das vezes não aproveitando ao máximo aquele momento e depois que passa só nos resta a lembrança.

É... uma boa lembrança no meu caso, e uma vontade imensa de voltar no tempo e poder brincar inocentemente de amarelinha, elástico, dica, salada de frutas (etc.), sem a maldita responsabilidade que um adulto deve ter.

Quando penso que hoje tenho que batalhar nesse mundo "cão" para me estabilizar profissional e financeiramente vejo que a tarefa de estudar e passar de ano não era nada...as brincadeiras inocentes precisam ceder espaço para conversas maduras e reuniões de trabalho. Agora me pergunto também muitas vezes: para que tudo isso? Para que a gente corre tanto nessa vida se o final dela infelizmente é o mesmo pra todos nós?

Ah é tudo muito confuso para uma pós-adolescente que teve que decidir aos 19 anos a profissão dela para o resto de sua vida. É meio maluco isso né, não?
Aos 22 anos, agora, me vejo em um dilema, estudar e trabalhar, mas será que é com isso mesmo que quero trabalhar para o resto da minha vida? É, eu acho que sim, mas a dificuldade no mercado de trabalho me deixa com medo do meu futuro.

Tenho que correr atrás dele, mas ele insiste em correr de mim. Penso hoje em mudar de cidade para conseguir me estabilizar profissionalmente, e ai vem a questão maior, sempre disse que nunca deixaria minha família, mas é que nem dizem: nunca diga nunca...um dia você terá que voltar atrás.

Aí penso também, será que me mudar é a melhor opção? E se não der certo? Poxa. Estou quase pensando em virar hippie. Ah, mais também não tem nada a ver comigo... Eu quero minha infância de volta, quando eu não precisava tomar tantas decisões e ter tanta responsabilidade.

E como isso não pode acontecer eu vou convivendo com as palavras de Pedro Bial em Filtro Solar: "Nao se preocupe com o futuro, cante, não se sinta culpado por não saber o que fazer da vida, as pessoas mais interessantes que conheço não sabiam aos 22 o que queriam fazer da vida, alguns dos quarentões mais interessantes que eu conheço não sabem, as suas escolhas tem sempre metade da chance de dar certo, é assim pra todo mundo..."


DRIELY DA GRAÇA

O QUE PASSOU, (NÃO) PASSOU!


Ao entrar no ônibus para a faculdade, tive que fazer uma coisa que odeio: sentar entre dois conhecidos. Como ontem foi dia de Bavice, esse é, normalmente, o principal assunto que permeia as conversas. No meu caso começou de forma tranqüila com um vicitorinha contando que quase teve um infarto por causa da narração do quase gol do Baeaço. Aí começou minha tortura. Tive que aturar ele dizer que “300 torcedores da torcida ‘Invisíveis’ foram mais atitude que toda a torcida do Bahia”. Tive que ouvir, calada, ele comparar o campeonato baiano desse ano com o do ano passado: “nós perdemos a maioria dos Bavi(ces), mas quem levou a taça? Problema se vocês têm duas estrelas, nenhum de vocês eram nascidos! E aí os sofredores ‘piu’!”

Piu uma porra!

Quer dizer que o passado de um time é deixado de lado quando ele está numa fase ruim? Qual o prazo? Não nos apaixonamos por um momento do time, e sim, por tudo o que ele é e por tudo o que FOI! Se fosse assim só existiriam vira-folhas. Não somos “fanaticozinhos” como disse meu vice-padrasto, somos apaixonados por uma história, por uma tradição, um time que tomou corpo e ganhou alma. E essa alma somos nós, torcedores do Baeaço, que sabemos que o passado construiu o que somos hoje e é exatamente por causa dele que podemos almejar um futuro brilhante.


sábado, 28 de março de 2009

UENDE NATANE

(SEM TÍTULO)

Às vezes, quando pego aquelas velhas agendas para ler, surpreendo-me com a ingenuidade de outrora. Imaturidade, mesmo. Aquelas frases de auto-ajuda que você escreve numa página para nunca esquecer que a vida é bela e que a felicidade existe; a tentativa desenfreada de ser feliz, de se convencer, através de escritores de auto-ajuda, que a felicidade está ao alcance. E com o passar dos anos tudo desmorona, vem aquele “clique” de que a felicidade é algo subjetivo (depende de “n” fatores) e a realidade do mundo fica na sua frente. Com ela, novas sensações, novas dúvidas. Aliás, as dúvidas são, diria, as certezas das nossas vidas. Elas vão nos acompanhar aonde quer que estejamos, e quanto mais o amadurecimento, mais dúvidas. Dúvidas de tudo. Das regras, de Deus, da religião, das pessoas, do amor, de você. Principalmente das suas ações. Nessas horas, lembro perfeitamente de Kerouac em On The Road: “Não é verdade que você começa a vida como uma criancinha crédula sob a proteção paterna? E então chega o dia da indiferença, em que o cara descobre que é um desgraçado, um miserável, fraco, cego e nu, e com a aparência de um fantasma fatigado e fatídico avança trêmulo por uma vida de pesadelo”.





VOCÊ


Não sei até quando isso vai durar. Não sei se vamos evoluir. Não sei se vamos nos relacionar. Não que eu não queira. Aliás, cheguei num momento que não vou deixar passar mais nada. Mas o problema é você. Não consigo relaxar. Você me trava, me deixa sem graça. Eu queria muito dizer que sim e ponto final. Mas não consigo. Com você, eu não consigo.

Mas o momento está tão bom, gostoso. As mensagens, os telefonemas surpresa na madrugada, você dizer que só minha voz te excita. Dizer que me faria feliz. Eu estou percebendo seu coração mole, doce, mas te mostrando o contrário em relação a mim. Ah se você soubesse o quanto ele bate forte quando escuto o telefone tocar e vejo seu nome, tendo até que desligá-lo para a ansiedade não me engolir.

Se você soubesse das inúmeras vezes que apaguei seu número, e fiquei que nem uma louca procurando onde eu tinha anotado, para gravar novamente; se soubesse que seu nome vem na minha cabeça toda hora, várias vezes por dia e demora pra sair; se soubesse que procuro ocupar meu tempo o máximo possível pra não lembrar de você e querer ligar; se soubesse que quando eu digo que não quero você, é porque tenho medo, mas no fundo, se eu pudesse, tudo já teria acontecido, e estaríamos de cabeça erguida sendo felizes.

Fico parada no tempo. Na madrugada, sinto um silêncio que incomoda, principalmente quando se está sozinha dentro de um quarto escuro. Acendo a luz e coloco o fone no ouvido. Estaciono os olhos no visor do celular, torcendo pra que ele toque. E a última coisa que gostaria que soubesse é que tenho tido overdose da nossa música preferida e só me vem uma pessoa na cabeça.

Você.

O PADEIRO

Rubem Braga

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o quê do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:

– Não é ninguém, é o padeiro!

Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo?

"Então você não é ninguém?"

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.

Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!"

E assobiava pelas escadas.


Fonte: Para gostar de ler, Vol I - Crônicas. Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga. 12. ed. São Paulo: Ática.1989. p.63 - 64.

UMA IMAGEM DE PRAZER

Clarice Lispector

Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma floresta, e na floresta vejo a clareira verde, meio escura, rodeada de alturas, e no meio desse bom escuro estão muitas borboletas, um leão amarelo sentado, e eu sentada no chão tricotando. As horas passam como muitos anos, e os anos se passam realmente, as borboletas cheias de grandes asas e o leão amarelo com manchas - mas as manchas são apenas para que se veja que ele é amarelo, pelas manchas se vê como ele seria se não fosse amarelo. O bom dessa imagem é a penumbra, que não exige mais do que a capacidade de meus olhos e não ultrapassa minha visão. E ali estou eu, com borboleta, com leão. Minha clareira tem uns minérios, que são as cores. Só existe uma ameaça: é saber com apreensão que fora dali estou perdida, porque nem sequer será floresta (a floresta eu conheço de antemão, por amor), será um campo vazio (e este eu conheço de antemão através do medo) - tão vazio que tanto me fará ir para um lado como para outro, um descampado tão sem tampa e sem cor de chão que nele eu nem sequer encontraria um bicho para mim. Ponho apreensão de lado, suspiro para me refazer e fico toda gostando de minha intimidade com o leão e as borboletas; nenhum de nós pensa, a gente só gosta. Também eu não sou em preto e branco; sem que eu me veja, sei que para eles eu sou colorida, embora sem ultrapassar a capacidade de visão deles (nós não somos inquietantes). Sou com manchas azuis e verdes só para estas mostrarem que não sou azul nem verde - olha só o que eu não sou. A penumbra é de um verde escuro e úmido, eu sei que já disse isso mas repito por gosto de felicidade; quero a mesma coisa de novo e de novo. De modo que, como eu ia sentindo e dizendo, lá estamos. E estamos muito bem. Para falar a verdade, nunca estive tão bem. Por quê? Não quero saber por quê. Cada um de nós está no seu lugar, eu me submeto bem ao meu lugar. Vou até repetir um pouco mais porque está ficando cada vez melhor: o leão amarelo e as borboletas caladas, eu sentada no chão tricotando, e nós assim cheios de gosto pela clareira verde. Nós somos contentes.


Publicada em Para Não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Fonte: Alô Escola