Sol de 34 graus, recebo uma ligação no meu celular. Meu namorado me fazendo um convite para irmos à praia. Aceitei na hora, óbvio, um calor desses, o melhor que poderia fazer é encarar o sol, revê-lo - tomar uma cerveja gelada e comer um caranguejo.
Escolho meu melhor biquíni e lá me vou. Marcamos ás 10h30min no meu prédio e lá decidimos que iríamos para Jaguaribe, pois é uma praia mais perto e nós nesse dia estávamos sem carro. Além do mar estar calmo nesse dia muitas pessoas tiveram a mesma ideia de pegar um bronze. E a partir daí acontecem alguns encontros. A primeira etapa é o ônibus. Dia de sábado, com esse calor, o mínimo que posso esperar são “criaturas”, uma se “esfregando” na outra em busca do melhor lugar no “buzu”. Tudo bem, alguns empurrões de lá, outros de cá, cheguei, ufa!!Pensei!Que infeliz idéia de vir de ônibus á praia em pleno fim de semana. Mais vamos em frente! Coragem!. De cima percebo o movimento, penso quanta gente, não disse?! Errei o dia?! Mas agora não há mais tempo para desistir, a praia me espera. Encontro uma mesa na barraca Areal, depois de solicitar o cardápio e pedir uma Skol bem gelada, vejo aonde irei sentar para pegar um bronze. Corpos espalhados na areia pareciam mais um rodízio de carnes. Umas mal passadas outras bem passadas e ainda por cima tinha uma criatura que estava esticada na areia cheia de óleo e areia parecia um rosbife empanado tinha carne para todos os gostos. Como se fosse possível avistei um pequeno metro quadrado para “esticar” o meu corpo, olho e logo me sento, senão, corro o risco de perder o lugar ao sol. Reparos nos que estão presente naquele mesmo local. Não é possível, pergunto a meu namorado se hoje é domingo, ele ironicamente diz que não e ri. Relembro os maravilhosos dias que já tive na costa. Procurávamos vir aos sábados porque era sempre mais tranqüilo e não havia “briga” por um metro quadrado na areia. Com o passar dos anos, a situação começou a mudar, não sei se foi o desemprego, o que posso afirmar, é que hoje, as praias vivem lotadas.
Mulheres e homens desfilam para lá e para cá, até parece um desfile de moda. Cada um, querendo exibir o físico, os corpos esculturais. Assim começa a guerra da beleza no litoral da cidade. Mulheres magérrimas, homens super sarados. Só de perceber e pensar no assunto, até tenho vergonha de tirar a roupa.
Biquínis de lacinhos, top less, fio dental, asa delta, entre tantos outros modelitos, detalhe, menores com o passar dos anos. Olho para todos os cantos e lugares, juro que não consigo parar de pensar de como é difícil regrar a alimentação. É dificílimo encontrar um ser humano que fuja do padrão de beleza exigido pela nossa sociedade esquelética (com raras exceções). Começo a me sentir uma estranha no ninho, será que eu sou louca por querer viver feliz sem restrições a alimentação? Tenho quase certeza que sim, no mínimo, um ser de outro mundo, ou é exagero? Saudade mesmo é da época que eu era pequena que usavaum maiô rosa e amarelo, as mulheres não eram magras dessa maneira. Pelo contrário, o padrão de beleza exigido era corpos exuberantes, roliços, com volume, ou no mais popular (um pouco grotesco) havia carne para pegar. Com todo esse exibicionismo, as gordinhas são raras nas praias. Tem umas até ousadas, que colocam seus biquínis e tratam de aproveitar. Certas são elas que não se preocupam com o que os outros falam.
Meu Deus, até os farofeiros estão sumindo. Eu mesma quando ia à praia há anos com a família, era certo levarmos nossa vasilha com uma boa farofa de manteiga e o franguinho assado e desfiado. Mais atenção! Só quando a praia era distante, quase deserta, tipo Scarife. Hoje, os alimentos mais procurados na maioria das vezes pelos sarados (as) e esqueléticos são: sanduíches naturais, sucos energéticos, açaí, e seus derivados. Infelizmente já não trago mais a minha farofa, vontade não falta, mas coragem... hum, essa é que não me deixa trazer. Após mais um gole da loira mais exuberante da beira-mar, me dou conta de que também faço parte dessa sociedade com regras impostas.
Naquele fim de tarde cheguei a pensar que iria cumprir, mais uma vez, uma conhecida rotina. No princípio, até que não me enganei, pois era no mesmo velho ônibus que eu me encontrava disputando, com um amontoado de pessoas, um lugar para sentar.
Vencida a batalha, e de posse do meu lugar, inesperadamente, vi cair sobre o meu colo um enorme buquê de flores do campo. Foi nesse momento que, sem esperar, iniciei um trajeto novo e inesquecível:
- Por favor, segure para mim.
Saiu ligeiro até o cobrador, pagou a passagem e, correndo, voltou para as suas flores.
-Muito obrigado – me disse o senhor – agora eu seguro.
Eu lhe disse que poderia segurar e, ao querer colocá-las – indevidamente – no chão, o homem não concordou e em um grito desesperado, bradou:
- A senhora vai machucar as flores!
Quis tomá-las da minha mão. Não deixei.
Nesse deixa-não-deixa, o ônibus deu aquele famoso freio de arrumação – como se nos mandasse ficar quietos – e o senhor das flores foi jogado, primeiro pra trás, depois, pra frente sem piedade. Eu, que com uma das mãos segurava as benditas flores, com a outra catei o velhinho e fiz o que era certo e de direito: levantei-me e cedi o lugar para ele.
Agradecido, acomodou-se, colocou as flores – que deviam estar cansadas de tantos solavancos – delicadamente, no colo e, voltando-se para mim com olhos brilhantes, quase chorosos, desabafou:
- São para minha filha! Ela faz aniversário hoje. É uma moça maravilhosa e me faz rir até quando brigamos.
Naquele instante, confesso, senti inveja daquela filha, daquele pai, daquelas flores. Eu não podia ficar imune a tanta ternura, a tanto carinho. Era o perfume do amor que exalava a cada vez que aquele pai fazia elogios à sua filha e ajeitava, cuidadosamente, as flores. A impressão que me dava era que em seu colo estava não um buquê de flores do campo, mas ela, ela mesma, a sua filha.
Segui a viagem em pé, porém, ao seu lado, escutando, atenta, as histórias que ele contava a respeito da filha. Seu primeiro aniversário, sua festinha de quinze anos, seu primeiro namorado, o dia em que se casou...
Memórias de pais amorosos podem até ser parecidas, mas, com certeza, têm perfumes inigualáveis.
(SEM TÍTULO II)
Quando eu nasci, o meu país não era livre mas, mesmo assim, a cada sete de setembro comemorava-se a Independência do Brasil. Ainda me lembro, apesar de bem pequena, da minha jovem mãe, linda como sempre e, mais ainda, naquele vestido de flores, a me acordar com seu largo sorriso. Eufórica, queria todos de pé para que fossemos assistir ao que ela chamava de parada.
Nesse tempo, criança não tinha vontade própria e, assim como no nosso país o regime não nos dava escolhas, tínhamos que obedecer às ordens superiores. Meus irmãos, eles sim, pulavam da cama ansiosos para ver os tanques de guerra, as acrobacias dos motociclistas e os pracinhas que, com meu pai sempre dizia: haviam lutado na 2ª guerra mundial. Guardo ainda na lembrança, do meu olhar de criança, um sentimento de pena daqueles velhinhos que, a passos lentos, não sei se pelo peso da idade ou das enormes medalhas, arrastavam-se pela avenida.
Se meus irmãos e meus pais se divertiam eu, pelo contrário, torcia pra que aqueles homens de fardas e imensas botinas apressassem o passo e me deixassem brincar de roda gigante no parquinho que, todo ano, era montado na Praça do Campo Grande.
A GENTE SÓ DÁ VALOR QUANDO PERDE... SAUDADES DA ÉPOCA DA ESCOLA
Por que será que nessa vida a gente só sabe valorizar as coisas quando as perdemos?
Me peguei pensando na época de escola, quando a gente não tem responsabilidade nenhuma, somente a grande missão de estudar e passar de ano - que pra gente, naquele momento, é uma tarefa muito árdua.
Pense que nem imaginamos o que nos espera pela frente. A tendência é piorar mesmo. Não é uma visão pessimista, mas realista. O pior de tudo é que acabamos na maioria das vezes não aproveitando ao máximo aquele momento e depois que passa só nos resta a lembrança.
É... uma boa lembrança no meu caso, e uma vontade imensa de voltar no tempo e poder brincar inocentemente de amarelinha, elástico, dica, salada de frutas (etc.), sem a maldita responsabilidade que um adulto deve ter.
Quando penso que hoje tenho que batalhar nesse mundo "cão" para me estabilizar profissional e financeiramente vejo que a tarefa de estudar e passar de ano não era nada...as brincadeiras inocentes precisam ceder espaço para conversas maduras e reuniões de trabalho. Agora me pergunto também muitas vezes: para que tudo isso? Para que a gente corre tanto nessa vida se o final dela infelizmente é o mesmo pra todos nós?
Ah é tudo muito confuso para uma pós-adolescente que teve que decidir aos 19 anos a profissão dela para o resto de sua vida. É meio maluco isso né, não?
Aos 22 anos, agora, me vejo em um dilema, estudar e trabalhar, mas será que é com isso mesmo que quero trabalhar para o resto da minha vida? É, eu acho que sim, mas a dificuldade no mercado de trabalho me deixa com medo do meu futuro.
Tenho que correr atrás dele, mas ele insiste em correr de mim. Penso hoje em mudar de cidade para conseguir me estabilizar profissionalmente, e ai vem a questão maior, sempre disse que nunca deixaria minha família, mas é que nem dizem: nunca diga nunca...um dia você terá que voltar atrás.
Aí penso também, será que me mudar é a melhor opção? E se não der certo? Poxa. Estou quase pensando em virar hippie. Ah, mais também não tem nada a ver comigo... Eu quero minha infância de volta, quando eu não precisava tomar tantas decisões e ter tanta responsabilidade.
E como isso não pode acontecer eu vou convivendo com as palavras de Pedro Bial em Filtro Solar: "Nao se preocupe com o futuro, cante, não se sinta culpado por não saber o que fazer da vida, as pessoas mais interessantes que conheço não sabiam aos 22 o que queriam fazer da vida, alguns dos quarentões mais interessantes que eu conheço não sabem, as suas escolhas tem sempre metade da chance de dar certo, é assim pra todo mundo..."
Ao entrar no ônibus para a faculdade, tive que fazer uma coisa que odeio: sentar entre dois conhecidos. Como ontem foi dia de Bavice, esse é, normalmente, o principal assunto que permeia as conversas. No meu caso começou de forma tranqüila com um vicitorinha contando que quase teve um infarto por causa da narração do quase gol do Baeaço. Aí começou minha tortura. Tive que aturar ele dizer que “300 torcedores da torcida ‘Invisíveis’ foram mais atitude que toda a torcida do Bahia”. Tive que ouvir, calada, ele comparar o campeonato baiano desse ano com o do ano passado: “nós perdemos a maioria dos Bavi(ces), mas quem levou a taça? Problema se vocês têm duas estrelas, nenhum de vocês eram nascidos! E aí os sofredores ‘piu’!”
Piu uma porra!
Quer dizer que o passado de um time é deixado de lado quando ele está numa fase ruim? Qual o prazo? Não nos apaixonamos por um momento do time, e sim, por tudo o que ele é e por tudo o que FOI! Se fosse assim só existiriam vira-folhas. Não somos “fanaticozinhos” como disse meu vice-padrasto, somos apaixonados por uma história, por uma tradição, um time que tomou corpo e ganhou alma. E essa alma somos nós, torcedores do Baeaço, que sabemos que o passado construiu o que somos hoje e é exatamente por causa dele que podemos almejar um futuro brilhante.
Às vezes, quando pego aquelas velhas agendas para ler, surpreendo-me com a ingenuidade de outrora. Imaturidade, mesmo. Aquelas frases de auto-ajuda que você escreve numa página para nunca esquecer que a vida é bela e que a felicidade existe; a tentativa desenfreada de ser feliz, de se convencer, através de escritores de auto-ajuda, que a felicidade está ao alcance. E com o passar dos anos tudo desmorona, vem aquele “clique” de que a felicidade é algo subjetivo (depende de “n” fatores) e a realidade do mundo fica na sua frente. Com ela, novas sensações, novas dúvidas. Aliás, as dúvidas são, diria, as certezas das nossas vidas. Elas vão nos acompanhar aonde quer que estejamos, e quanto mais o amadurecimento, mais dúvidas. Dúvidas de tudo. Das regras, de Deus, da religião, das pessoas, do amor, de você. Principalmente das suas ações. Nessas horas, lembro perfeitamente de Kerouac em On The Road: “Não é verdade que você começa a vida como uma criancinha crédula sob a proteção paterna? E então chega o dia da indiferença, em que o cara descobre que é um desgraçado, um miserável, fraco, cego e nu, e com a aparência de um fantasma fatigado e fatídico avança trêmulo por uma vida de pesadelo”.
VOCÊ
Não sei até quando isso vai durar. Não sei se vamos evoluir. Não sei se vamos nos relacionar. Não que eu não queira. Aliás, cheguei num momento que não vou deixar passar mais nada. Mas o problema é você. Não consigo relaxar. Você me trava, me deixa sem graça. Eu queria muito dizer que sim e ponto final. Mas não consigo. Com você, eu não consigo.
Mas o momento está tão bom, gostoso. As mensagens, os telefonemas surpresa na madrugada, você dizer que só minha voz te excita. Dizer que me faria feliz. Eu estou percebendo seu coração mole, doce, mas te mostrando o contrário em relação a mim. Ah se você soubesse o quanto ele bate forte quando escuto o telefone tocar e vejo seu nome, tendo até que desligá-lo para a ansiedade não me engolir.
Se você soubesse das inúmeras vezes que apaguei seu número, e fiquei que nem uma louca procurando onde eu tinha anotado, para gravar novamente; se soubesse que seu nome vem na minha cabeça toda hora, várias vezes por dia e demora pra sair; se soubesse que procuro ocupar meu tempo o máximo possível pra não lembrar de você e querer ligar; se soubesse que quando eu digo que não quero você, é porque tenho medo, mas no fundo, se eu pudesse, tudo já teria acontecido, e estaríamos de cabeça erguida sendo felizes.
Fico parada no tempo. Na madrugada, sinto um silêncio que incomoda, principalmente quando se está sozinha dentro de um quarto escuro. Acendo a luz e coloco o fone no ouvido. Estaciono os olhos no visor do celular, torcendo pra que ele toque.E a última coisa que gostaria que soubesse é que tenho tido overdose da nossa música preferida e só me vem uma pessoa na cabeça.
Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o quê do governo.
Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:
– Não é ninguém, é o padeiro!
Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo?
"Então você não é ninguém?"
Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...
Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.
Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!"
E assobiava pelas escadas.
Fonte: Para gostar de ler, Vol I - Crônicas. Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga. 12. ed. São Paulo: Ática.1989. p.63 - 64.
Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma floresta, e na floresta vejo a clareira verde, meio escura, rodeada de alturas, e no meio desse bom escuro estão muitas borboletas, um leão amarelo sentado, e eu sentada no chão tricotando. As horas passam como muitos anos, e os anos se passam realmente, as borboletas cheias de grandes asas e o leão amarelo com manchas - mas as manchas são apenas para que se veja que ele é amarelo, pelas manchas se vê como ele seria se não fosse amarelo. O bom dessa imagem é a penumbra, que não exige mais do que a capacidade de meus olhos e não ultrapassa minha visão. E ali estou eu, com borboleta, com leão. Minha clareira tem uns minérios, que são as cores. Só existe uma ameaça: é saber com apreensão que fora dali estou perdida, porque nem sequer será floresta (a floresta eu conheço de antemão, por amor), será um campo vazio (e este eu conheço de antemão através do medo) - tão vazio que tanto me fará ir para um lado como para outro, um descampado tão sem tampa e sem cor de chão que nele eu nem sequer encontraria um bicho para mim. Ponho apreensão de lado, suspiro para me refazer e fico toda gostando de minha intimidade com o leão e as borboletas; nenhum de nós pensa, a gente só gosta. Também eu não sou em preto e branco; sem que eu me veja, sei que para eles eu sou colorida, embora sem ultrapassar a capacidade de visão deles (nós não somos inquietantes). Sou com manchas azuis e verdes só para estas mostrarem que não sou azul nem verde - olha só o que eu não sou. A penumbra é de um verde escuro e úmido, eu sei que já disse isso mas repito por gosto de felicidade; quero a mesma coisa de novo e de novo. De modo que, como eu ia sentindo e dizendo, lá estamos. E estamos muito bem. Para falar a verdade, nunca estive tão bem. Por quê? Não quero saber por quê. Cada um de nós está no seu lugar, eu me submeto bem ao meu lugar. Vou até repetir um pouco mais porque está ficando cada vez melhor: o leão amarelo e as borboletas caladas, eu sentada no chão tricotando, e nós assim cheios de gosto pela clareira verde. Nós somos contentes.
Publicada em Para Não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Fonte: Alô Escola
Se a mitologia dos povos antigos tivesse dado formas de mulher, de fada ou ninfa, às semanas, como fêz com as horas, não me veria às vêzes em tão sérios embaraços para escrever esta revista.
Em lugar de estar a cogitar idéias, a parafusar novidades, e a lembrar-me de fatos e coisas passadas, pediria emprestado a algum dos tipos da grande galeria feminina as feições e os traços para desenhar o meu original.
Assim, quando me viesse uma semana alegre e risonha, mas muito inconstante, com uns dias cheios de nuvens, e outros límpidos e brilhantes, iluminados pelos raios esplêndidos do sol, uma semana elegante de teatros e de bailes, imaginaria alguma fada de formas graciosas, de olhos grandes, com uma certa altivez misturada de uma dose sofrível de loureirismo.
Vestiria a minha fada de branco com algumas fitas côr-de-rosa, pedir-lhe-ia que me contasse com tôda a graça e travessura do seu espírito os segredos de suas horas e de seus instantes.
Ao contrário, se fôsse uma semana bem calma e bem tranqüila, em que os dias corressem puros e serenos, em que fizesse umas belas noites de luar bem suaves e bem calmas, de céu azul e de estrêlas cintilantes, lembrar-me-ia de alguma moreninha da minha terra, de faces côr de jambo, ojos adormidillos, como dizem os espanhóis.
Então escreveria uma poesia, um poema, um romance ou um idílio singelo, e livrava-me assim de meter-me em certas questões graves e importantes que ocupam a atualidade. Faria como o poeta; e limitar-me-ia às pequenas coisas que me tivessem interessado. Nugae, quarum pars parva fuit.
É verdade que, quando me acertasse cair uma semana como esta passada, onde iria eu procurar um tipo, um modêlo que a caracterizasse perfeitamente? Lembro-me de uma mulher, que descreveu Byron, a qual, com algumas modificações, talvez me pudesse bem servir para o caso.
Seu único aspecto (da mulher) valia um discurso acadêmico; cada um de seus olhos era um sermão; na sua fronte estava estampada uma dissertação gramatical. Enfim, era uma aritmética ambulante. Dir-se-ia uma correspondência ou alguma velha polêmica que se houvesse despegado do seu competente jornal, para andar pelo mundo a discutir e argumentar.
Com efeito, só êste tipo imitado de D. Juan poderia dar uma ligeira idéia da semana passada, a qual num formulário de botica podia bem traduzir-se pela seguinte receita: uma dose de sol, duas de chuva e três de maçada. Admirável receita para curar a população desta côrte da febre de novidades que tem produzido a guerra do Oriente.
Os antigos, porém, que fizeram tanta coisa boa, esqueceram-se dessa invenção de personificar a semana, e por conseguinte não há remédio senão deixar as comparações e voltar ao positivo da crônica, desfiando fato por fato, dia por dia.
Aposto que já estais a rir dêste meu projeto, perguntando com os vossos botões que fatos são êstes que descobri na semana passada, que acontecimentos se deram nestes dias, que valham a pena, não já escrever simplesmente, mas contar.
Ides ver. Em primeiro lugar, contar-vos-ei que a semana teve sete dias e sete noites, tal e qual como as outras. Dêstes sete dias muitos foram de chuva, e alguns estiveram tão belos, tão frescos, tão puros, que sentia-se a gente renascer com o sol que vivificava a natureza. As noites foram quase tôdas de inverno e de teatro.
No Provisório estreou a nova cantora, completando-se assim o número das três deusas que devem disputar o pomo de ouro, o qual também foi pomo da discórdia. O público dilettante está por conseguinte arvorado em Paris; e os poetas já se prepararam para cantar a nova Ilíada e as causas terríveis de tão funesta guerra. Et teterrimas belli causas.
Em São Pedro de Alcântara o aparecimento de João Caetano produziu uma noite de entusiasmo e um novo triunfo para o artista distinto, único representante da arte dramática no Brasil.
Infelizmente as circunstâncias precárias do nosso teatro, ou outras causas que ignoramos, não têm dado lugar a que João Caetano forme uma escola sua, e trate de elevar a sua arte, que no nosso país ainda se acha completamente na infância.
É a êste fim que deve presentemente dedicar-se o ator brasileiro. Sua alma já deve estar saciada destês triunfos e dessas ovações pessoais, que são apenas a manifestação de um fato que todos reconhecem. Como ator, já fêz muito para sua glória individual; é preciso que agora como artista e como brasileiro trabalhe para o futuro de sua arte e para o engrandecimento de seu país.
Se João Caetano compreender quanto é nobre e digna de seu talento esta grande missão, que outros, antes de mim, já lhe apontaram; se, corrigindo pelo estudo alguns pequenos defeitos, fundar uma escola dramática que conserve os exemplos e as boas lições do seu talento e a sua experiência, verá abrir-se para êle uma nova época.
O govêrno não se negará certamente a auxiliar uma obra tão útil para o nosso desenvolvimento moral; e, em vez de vãs ostentações, de coroas e de versos que se procuram engrandecer ùnicamente pelo assunto, terá o que lhe tem faltado até agora, o apoio e a animação da imprensa desta côrte.
Uma das coisas que têm obstado a fundação de um teatro nacional é o receio da inutilidade a que será condenado êste edifício, com o qual decerto se deve despender avultada soma. O gôverno não só conhece a falta de artistas, como sente a dificuldade de criá-los, não havendo elementos dispostos para êsse fim.
Não temos uma companhia regular, nem esperanças de possuí-Ia brevemente. A única cena onde se representa em nossa língua ocupa-se com vaudevilles e comédias traduzidas do francês, nas quais nem o sentido nem a pronúncia é nacional.
Dêste modo ficamos reduzidos ùnicamente ao teatro italiano, para onde somos obrigados, se não preferimos ficar em casa, a dirigirmo-nos tôdas as noites de representação, quer cante a Casaloni, quer encante a Charton, quer descantem as coristas. Tudo é muito bom, visto que não há melhor.
Já algumas vêzes temos censurado a diretoria do teatro por certas coisas que nos parece se podem melhorar sem grandes sacrifícios. Hoje cumpre-nos fazer-lhe uma justiça, e até um elogio, que ela merece sem dúvida alguma, pela resolução que nos consta ter tomado de reparar o edifício e iluminá-lo a gás.
A polícia também tem-se esmerado em fazer cessar as cenas tumultuárias e desagradáveis que se iam tornando tão freqüentes naquele teatro, e que, se continuassem, acabariam por afugentar dêle os apaixonados da música de batuque.
Não é, porém, ùnicamente no teatro que a polícia tem dado provas de atividade. Efetuou-se esta semana a prisão de um moedeiro falso, que se preparava a montar uma fábrica dessa indústria lucrativa.
O crime de moeda falsa é um dos mais severamente punidos em todos os países, porque ameaça a fortuna do Estado e a dos particulares. Entretanto não acho razão no legislador em ter punido ùnicamente o falsificador de moeda, deixando impunes muitos outros falsificadores bem perigosos para a nossa felicidade e bem-estar.
Todos os dias lemos nos jornais anúncios de dentistas, de cabeleireiros e de modistas, que apregoam postiços de tôdas as qualidades, sem que a lei se inquiete com semelhantes coisas.
Entretanto imagine-se a posição desgraçada de um homem que, tendo-se casado, leva para casa uma mulher tôda falsificada, e que de repente, em vez de um corpinho elegante e mimoso, e de um rostinho encantador, apresenta-lhe o desagradável aspecto de um cabide de vestidos, onde tôda a casta de falsificadores pendurou um produto de sua indústria.
Quando chegar o momento da decomposição dêste todo mecânico - quando a cabeleira, o ôlho de vidro, os dentes de porcelana, o peito de algodão, as anquinhas se forem arrumando sôbre o toilette - quem poderá avaliar a tristíssima posição dessa infeliz vítima dos progressos da indústria humana!
Nem ao menos as leis lhe concedem o direito de intentar uma ação de falsidade contra aquêles que o lograram, abusando de sua confiança e boa-fé. É uma injustiça clamorosa que cumpre reparar.
Um homem qualquer que nos dá a descontar uma letra de uns miseráveis cem mil réis, falsificada por êle, é condenado a uma porção de anos de cadeia. Entretanto aquêles que falsificam uma mulher, e que desgraçam uma existência, enriquecem e riem-se à nossa custa.
Deixemos esta importante questão aos espíritos pensadores, aos amigos da humanidade. Não temos tempo de tratá-la com a profundeza que exige; senão, resumiríamos o quadro de tôdas as desgraças que produzem não só aquelas falsificações do corpo, mas também muitas outras, como um olhar falso, um sorriso fingido, ou uma palavra mentida.
Demais, temos ainda de falar de uma outra medida do chefe de polícia a respeito dos cães, e que interessa extraordinàriamente a segurança pública. O que cumpre é zelar a sua execução para que não se torne letra morta, e faça cessar o perigo que corremos todos os dias de encontrarmos a cada momento na rua ou no passeio a morte do hidrófobo.
Afonso Karr levou dois anos a escrever para conseguir que a polícia de Paris adotasse esta útil medida de segurança pública, a que ordinàriamente damos tão pouco cuidado, e muitas vêzes mesmo nos revoltamos por um mal entendido sentimento de humanidade.
Um dos maiores obstáculos que êle encontrou sempre foram certos prejuízos, certos erros consagrados e que todo o mundo repete, sem refletir, nem compreender o sentido das palavras que profere.
Assim, desde a antiguidade se diz que o cão é o amigo fiel do homem, o tipo e o môdelo da amizade.
Êste consentimento unânime, diz o escritor francês, é uma singular revelação do caráter do homem. O cão obedece sem reflexões, se submete a todos os caprichos e a tôdas as vontades sem distinção; quando o castigam, em vez de se defender, roja-se aos pés de seu senhor e caricia a mão que o castigou. E é isto o que o homem chama um amigo!
Já se vê que o sentimento não é tão nobre como o parece a princípio. Tôdas estas vãs declamações dos poetas sobre êsse animal, que dizem representar o símbolo da fidelidade, dão uma bem mesquinha idéia do coração humano.
Não é, pois, o prazer de possuir um autômato, que se move a nossa vontade, que pode compensar um dos maiores riscos a que estamos sujeitos, e para o qual olhamos indiferentemente.
* A crônica não tem título; aparece encabeçada pela data de publicação.
Publicada no Correio Mercantil, em 19/11/1854 e também no livro Fonte:Alô Escola
Acho que tenho de dar umas explicações antes de começar, principalmente para os que não gostam muito de baianos.
O que vou escrever pode parecer até uma carta — e, de certa forma, é —, mas uma carta de interesse público.
E interesse de todo o Brasil, razão por que não merece ser tida como apenas um papo da baianada, que devia ficar circunscrito a ela, sem chatear quem não tem nada com isso.
Mas podem crer que todos os brasileiros têm alguma coisa com isso, até mesmo os que não a enxerguem ou admitam.
O feriado me obrigou a escrever com mais antecipação e não sei se, nos dias decorridos até hoje, o ministro Gil se manifestou sobre o problema. E, se se manifestou, não o fez através daqueles arabescos verbais abstratos e sonorosos em que adeja sua mente de artista, às vezes bonitos de ouvir, mas de árdua decifração, pelo menos para as limitações de meu entendimento. Se falou o que pelo menos eu esperava que ele falasse, tal como o resto da baianada, alvíssaras, mas, mesmo assim, o que vai dito abaixo precisa ser dito.
Lembrei de Glauber, uma vez, na casa dele, em Sintra, Portugal. Entrei e ele estava furioso com alguma coisa, nunca vou saber o quê. Me encarou carrancudo e esbravejou:
— Vou telefonar para o ministro da Cultura! Ele é ministro da Cultura, eu sou cultura e ele tem que me ministeriar!
Nada mais lógica e claramente expresso. E agora Gil tinha que estar ministeriando Jorge Amado, mas, que eu saiba, não está. E com isso se arrisca a entrar para a História como o ministro da Cultura em cuja gestão o insubstituível acervo de Jorge Amado foi tirado da Bahia e entregue à Universidade de Harvard. Ou seja, o Brasil não queria manter o acervo de um de seus filhos mais ilustres, um dos escritores mais importantes do mundo (sei que há quem discorda, mas para mim quem discorda é burro e, se quiser, pode dizer que o burro sou eu) e um dos vultos mais importantes de nossa História. Ele gostava muito da gente, os “meninos” de então. Não esqueço do olhar dele, todo ancho, um sorrisão que quase lhe tomava a cara inteira, nos mirando como um patriarca orgulhoso. Não houve um de nós que ele não incentivasse, de quem não exigisse trabalho, sempre dando um jeito de botar o nome da gente em tudo quanto era entrevista que dava, sempre dando um conselho sábio. Gil deve ter muitas lembranças disso, até da casa do Rio Vermelho, hoje quase uma tapera — e foi lá, no chão de seu quintal, que Jorge quis que lhe derramassem as cinzas, como quis que seu tesouro ficasse sempre com seu povo e sua terra.
E Gil sabe também que, pouco depois de ele e eu nascermos, Jorge Amado era constituinte e, embora ateu como sempre foi, fez inserir na Constituição um dispositivo que garantia a liberdade de culto. Antes disso, a vastíssima população de origem africana da Bahia era obrigada à humilhação de ter que tirar licença na polícia para praticar suas religiões e, ainda assim, terreiros e casas de culto eram invadidos pela polícia, com destruição de casas e de objetos sagrados. Jorge não só alterou a Constituição como foi à luta. Não foi à luta somente criando heróis e protagonistas negros, antes quase inteiramente ignorados, mas militando, com amigos também negros, pela efetiva concretização da liberdade de culto e a restauração da dignidade das religiões de origem africana. Não foi demagogia nem vontade de aparecer que fez com que o honrassem com títulos elevados no mundo do candomblé. Foi por amizade e gratidão a um permanente companheiro de luta.
Gil sabe que a principal razão por que muita gente, aqui e no exterior, quer conhecer a Bahia não é praia. Quem quiser praia, só não tem praia em Minas. Em compensação tem muito barroco e quem quer ver barroco pode se fartar em Minas. Quem quiser igreja idem. O que distingue a Bahia é sua identidade, sua fala, o jeito de seu povo, sua mística, sua sensualidade espontânea, sua mitologia. Dirá um dos sabidos que por aí abundam: se Jorge não desse esse e outros passos, outro daria. Talvez, mas acontece que foi Jorge quem deu. E foi ele também, Gil se lembra, que, junto com Érico Veríssimo, brecou a decisão do governo militar de impor censura prévia aos livros. Se fizerem isso, disseram os dois grandes homens, não escrevemos mais uma linha.
Não sei se a cegueira e a surdez seletiva do chefe de Gil são contagiosas, mas parece que ele não sabe nem viu nada. E esqueceu que, sem baianos como Jorge Amado e Dorival Caymmi, a Bahia podia perfeitamente ser mais uma cidade portuária e de negócios, com a população majoritária ressentida ou francamente revoltada e racista. De novo pode vir o blablablá de que, se não fossem eles, seriam outros. Mas, de novo, acontece que foram eles.
Ou seja, sem Jorge talvez a Bahia fosse muito diferente do que é hoje. Talvez a arte não fosse a mesma, talvez Gil não tivesse régua e compasso (que podem estar precisando de manutenção, isso acontece), talvez seu talento não pudesse desabrochar, nem tivesse os ombros mais antigos em que todo talento novo se apóia. Era capaz até de surgir um sociólogo levantando a hipótese de que, se aquela sociedade não houvesse se tornado tão materialista, mercantilista e dividida, poderiam ter surgido artistas com o perfil de Gil. Foi isso que eu quis dizer, quando afirmei que Gil (não faça isso, Gil, não seja o ministro da Cultura sob cuja gestão o Brasil efetuou uma bela troca com Harvard, ela com os 250 mil itens do acervo de Jorge e nós com Mangabeira Unger) podia hoje não passar de uma hipótese. E eu também, claro. Aliás, no meu caso, nem mesmo chegar a hipótese, praticante que sou do mesmo ofício que Jorge. Mas não somos hipóteses, somos quem somos, Gil, é claro, muito mais belo e brilhoso. Só tenho a meu favor estar cumprindo minha obrigação e ele não.
Pela terceira noite consecutiva minha insônia começou às três e trinta e três (joguei no jacaré, 333, deu elefante, 444, na cabeça). Fui até a janela, era a minha última madrugada em Ipanema, o caminhão da mudança estava marcado para o meio dia.
No breu da noite não dava para ver as ilhas Cagarras, mas a draga da Cedae, ancorada pouco além da rebentação, foi um alumbramento, expressão usada, que eu saiba, pela primeira e última vez por Manuel Bandeira ("Um dia eu vi uma moça nuinha no banho/Fiquei parado o coração batendo/Ela se riu/Foi o meu primeiro alumbramento"). Durante o dia a draga é uma embarcação de triste figura, fazendo literalmente um trabalho de merda, consertando o emissário submarino que arrebentou. Mas na escuridão, com todas as luzes acesas, era tão deslumbrante quanto a cena do transatlântico em Amacord, de Fellini.
Pobre carioca, sem poder aproveitar a única coisa que ainda tem de graça. Não que banho de mar me faça falta. Ainda me lembro de quando havia mais água que coliformes fecais no mar, antigamente verde-azulado e hoje mais para o marrom-cocô.
Naquele tempo havia tatuís em Ipanema. O pessoal catava na areia os tatuís que depois da praia eram comidos com arroz no apartamento do Hugo Bidet. O gosto era horrível, mas tudo era festa.
Minhas fontes no quiosque Quase Nove me informaram que não tem mais tatuís em Ipanema. As dunas do Píer onde os baianos quando novos iam chegando e puxando o seu fuminho também não tem mais. Nem as empadas do Mau Cheiro, junto ao ponto final do Camões, o 12 - Central - G.Osório –, daí a Leila Diniz chamar a Praça de Gosório. Nem o Jangadeiro, quando era na Visconde de Pirajá, com o Cabeça gritando "caldereta" para o cara que tirava o chope. Nem aquelas minhoquinhas que picavam as bundas esplendorosas das moças, nem a Rua Montenegro, que virou Vinícius de Moraes (guardei a placa), nem Leila, nem o barbado. O que me sobrou daquela Ipanema embaçada num fog etílico foi a placa da rua Montenegro pregada na parede doutro apartamento, noutro bairro. E que agora está pregada numa árvore numa rua de terra em Itaipava. Amanhã saio de Ipanema para sempre e vou morar na ilha do Leblon.
Publicada em Ipanema (se não me falha a memória). Rio de Janeiro: Relume Dumará; Rio Arte; Secretaria Municipa de Cultura do Rio de Janeiro, 2000 (coleção Cantos do Rio).
Fonte: Alma Carioca
Não existe a palavra espelho – só espelhos, pois um único é uma infinidade de espelhos. – Em algum lugar do mundo deve haver uma mina de espelhos?
Não são precisos muitos para se ter a mina faiscante e sonambúlica: bastam dois, e um reflete o reflexo do que o outro refletiu, num tremor que se transmite em mensagem intensa e insistente ad infinitum, liquidez em que se pode mergulhar a mão fascinada e retirá-la escorrendo de reflexos, reflexos dessa dura água.
– O que é um espelho? Como a bola de cristal dos videntes, ele me arrasta para o vazio que no vidente é o seu campo de meditação, e em mim o campo de silêncios e silêncios. – Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre sem parar: pois espelho é o espaço mais profundo que existe.– E é coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. De onde também voltaria vazio, iluminado e translúcido, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho. – A sua forma não importa: nenhuma forma consegue circunscrevê-lo e alterá-lo, não existe espelho quadrangular ou circular: um pedaço mínimo é sempre o espelho todo: tira-se a sua moldura e ele cresce assim como água se derrama.
– O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo isenção de si mesmo, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade é ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem – então percebeu o seu mistério. Para isso há-de se surpreendê-lo sozinho, quando pendurado num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em simples imagem de uma agulha.
Devo ter precisado de minha própria delicadeza para não atravessá-lo com a própria imagem, pois espelho que eu me vejo sou eu, mas espelho vazio é que é espelho vivo. Só uma pessoa muito delicada pode entrar num quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal leveza, com tal ausência de si mesma, que a imagem não marca. Como prêmio, essa pessoa delicada terá então penetrado num dos segredos invioláveis das coisas: Vi o espelho propriamente dito.E descobri os enormes espaços gelados que ele tem em si, apenas interrompidos por um ou outro alto bloco de gelo.
Em outro instante, este muito raro – e é preciso ficar de espreita dias e noites, em jejum de si mesmo, para poder captar esse instante – nesse instante consegui surpreender a sucessão de escuridões que há dentro dele. Depois, apenas com preto e branco, recapturei sua luminosidade arco-irisada e trêmula. Com o mesmo preto e branco recapturei também, num arrepio de frio, uma de suas verdades mais difíceis: o seu gélido silêncio sem cor. É preciso entender a violenta ausência de cor de um espelho para poder recriá-lo, assim como se recriasse a violenta ausência de gosto da água.
Publicada em: Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.